São Longuinho, São Longuinho…
De pequena, praticamente todas as vezes que supliquei por recuperar algo perdido fui atendida. Depois de crescida comecei por puro pensamento objetivo a duvidar dos poderes de São Longuinho, mas diante da demora em achar o que se procurava, lá estava eu clamando ao Santo que me ajudasse a ver o objeto sumido mais uma vezinha. E atendida, tratava de dar os três pulinhos e três gritinhos em agradecimento.
Outro dia, cheguei do Pará exaurida de viajar por horas na longa combinação ônibus/avião/carro. Porém, estava satisfeita por ter recebido ajuda, durante todo o trajeto, dos meus queridos óculos que me permitiram entrar em mais uma história até seu final.
Já no quarto, desarrumei as malas, separando as roupas usadas das que ainda podiam entrar no guarda roupas. Tirei a nécessaire, o carregador do celular e tive a certeza de também ter pegado os meus inseparáveis óculos de leitura. Coloquei-os sobre o livro que eu havia acabado de ler em trânsito, como um sinal de epílogo. Porém, eu mal sabia que o final realmente estava próximo.
Passados uns dois dias resolvi entrar em mais uma história, “Meu Nome é Vermelho”, do escritor turco Orhan Pamuk. Pensei: “Que delícia, vou já pegar meus óculos para mergulhar num texto que me apresentará uma cultura distante. Impossível imaginar ler algo tão desafiador sem a ajuda deles”.
A última visão que tive de meus óculos foi criação da minha traidora memória que os colocou na cômoda do quarto sobre o livro lido na viagem, habituada a sempre tê-los a mão. Quando certa de encontrá-los estiquei o braço para pegá-los, mal pude acreditar no vazio onde meus dedos se fecharam. Meus olhos sem óculos não acreditavam no que estavam vendo, ou melhor, não vendo.
Todas as vezes que não os achava sentia um aberto na boca do estômago, pois foi com eles, meus primeiros óculos de leitura, que descobri minha capacidade de ler sem me cansar, sem dor de cabeça, sem preguiça. E só de imaginar não achá-los me dava medo de voltar a ser aquela não leitora de antes. Mas até então, sempre os tive ao alcance das mãos.
Acostumada a não perdê-los de verdade, procurei-os. E claro, apelei para o Santo. Mas estranhamente ele não me ouviu naquele momento. Não desanimei tranquilizando-me de ser apenas mais um desencontro temporário.
Passada uma semana, eu voltei a procurá-los. Foram incansáveis revistas pela casa toda e pedidos insistentes ao Santo – nunca pulei e gritei tanto na vida – desta vez não fui atendida e cheguei a fatídica e triste conclusão: não reaveria mais meus óculos. Desisti de prometer gritos e pulos e acabei aceitando que o Santo se vingou de mim por algum pecado distraído.
Eu teria agora de encarar novas histórias, paisagens, emoções e sentidos sem ele. Sem meu amigo íntimo. Sim, ele era meu grande e querido amigo íntimo. Era quem ocupava o espaço entre meus olhos e o mundo das palavras. Se eu não os estivesse usando, minha visão se limitava a apresentar-me uma incompleta compreensão do texto em todas as suas dimensões.
E o que fazer se eu estava louca de vontade para viajar pela Turquia do século XV?
Não tive outra opção a não ser encontrar um novo amigo. E como se sabe isso não é tarefa das mais fáceis.
Para ajudar no novo encontro, que se deu numa tarde de domingo, enchi uma taça de vinho, deixando-a ao alcance da mão e coloquei uma almofada na rede. Deitei sentido o macio da almofada em minha cabeça e o balançar suave da rede. Peguei o livro e a capinha dos óculos. Quando me senti confortável, retirei meu novo amigo de seu invólucro, abri suas hastes, coloquei-o a frente de meus olhos, dando-lhe um lugar em minha vida. Nesse momento a capa do livro se apresentou a mim como um vermelho intenso de variados tons, sedutora e nítida, convidando-me a mergulhar em seu interior.
Mergulhei.
Primeira, segunda, terceira… quando cheguei na décima página já não aguentava mais continuar. Minha cabeça doía e os óculos pesavam em meu nariz. Definitivamente o texto não fluía.
Fiquei arrasada!
Na noite seguinte, tentei outro encontro e me acomodei deitando sobre a cama de pernas para o ar, pés encostados na parede e com a luz do abajur acesa. Dessa vez fui um pouco mais longe. Mas fiquei convencida de não poder continuar pelos mesmos motivos de antes. Coloquei o livro no criado mudo e fui fazer outra coisa.
O texto? Maravilhoso! Fala de pintores das iluminuras, mergulhados em questões como o estilo e influência da arte Ocidental. Mistério de assassinato para descobrir. Vários narradores, até uma árvore conta a história. Costumes? Bem distantes dos meus em tempo e lugar. Afinal, trata-se de um escritor nascido e criado no Oriente.
Insistente que sou, não abandonei nem óculos, nem livro. Continuei mais vezes, até passar um terço da história. Porém, depois de alguns dias tratei de me bastecer de novos livros. Dentre os autores, escolhi meu querido Garcia Marques.
O dia era um sábado sem trabalho e livre para leituras. Não tive dúvida, sem criar clima nenhum, agarrei os “Doze Contos Peregrinos” de meu querido autor e sem quase sentir o peso dos óculos ou dor de cabeça, quando vi já havia terminado de ler aquelas incríveis história.
É, óculos novos e autor nunca antes lido não foi a melhor combinação para se começar um relacionamento.
Nada mais confortável do que visualizar um universo já conhecido apenas ajeitando o foco para enxergar os novos detalhes.
Assim, depois de ler autores que eu adoro, sinto-me pronta para voltar ao autor turco e vivenciá-lo com meu novo amigo, que se tornará íntimo depois de me ajudar no mergulho a estas águas desconhecidas.
Mas com certeza nunca me esquecerei de meus primeiros óculos de leitura.
Texto e ilustração: Valéria Pimentel
Maravilhoso!!! Surpreendentemente gostoso de ler. O mais interessante é a riqueza de detalhes na história. A medida que lemos, passa um grande filme em nossa cabeça, no qual cria muitas expectativas para o próximo parágrafo. Aguardo ansioso pela próxima crônica, para mergulhar em um mundo mágico e divertido. Até breve!