-Não, Tonico, não faça isso! Tonico, não faça isso, meu filho!
Era uma sexta-feira, fim de dia, quase noite, o ônibus ficava cada vez mais lotado de passageiros. Os acentos já ocupados fizeram o corredor se encher feito copo que transborda. E realmente iria transbordar.
-Por favor, Tonico, não vai estragar sua vida de novo, meu filho!
Quando ela sentou na primeira poltrona, aquela que fica ao lado do corredor, bem atrás do motorista, o odor que viajava pelo interior daquele meio de transporte ainda era agradável, mas à medida que subiam fragrâncias diferentes, ela foi ficando enjoada. Seu nariz ora capturava um perfume agradável, ora um azedo de sovaco mau lavado.
Os corpos apertados e em pé no corredor disputavam um mínimo espaço com as bagagens de mão não colocadas no bagageiro já lotado. De repente ela viu o inusitado: Não é possível! É uma geladeira! Não acredito que vão colocar a geladeira no maleiro.
Ela sabia que cabia de tudo lá dentro, mas nunca imaginou a cena de uma geladeira branca entrando no buraco que ficava abaixo de seus pés. Toda vez que vai descer no seu ponto final e o motorista abre aquele maleiro para pegar sua mala, ela vê como a vida de alguns passageiros é difícil de ser transportada: Eles não têm outra opção, é lá, naquele buraco que lhes resta transportar sua vida, seja ela qual for, seja ela a de um vendedor de redes e mantas ou a de um homem que precisa consertar sua geladeira em Belém, porque onde ele mora não tem quem o faça.
-Tonico, pensa bem, não vai perder a cabeça! Não vai querer voltar pra lá!
Depois que sua narina se adaptou àquela mistureba de cheiros e seu enjoo passou, ela se perdeu num outro sentido, o da audição. Era sempre assim naquele ônibus. Mas nas sextas à noite isso piorava por conta da lotação. O som que se ouvia lá dentro não era em uníssono, mas sim uma composição descompassada, daquelas difíceis de apreciar. Era preciso focar apenas em um dos sons para poder identificá-lo, já que a maioria dos passageiros conversava sem nenhuma discrição ao celular.
Uma coisa ela cada vez mais constatava: não é possível, o motorista vai ter que fechar a porta, não cabe mais ninguém.
– Calma Tonico, esfria essa cabeça!
E por associação de ideias incontroláveis do inconsciente, sua memória a levou para aquele dia quando ia de Belém para Paragominas, na direção contrária a sua atual. Era a primeira parada das várias que ainda aconteceriam até seu destino final.
Explodindo de vontade de ir ao banheiro, pegou sua bagagem de mão e perguntou ao motorista:
– Dá tempo de ir ao banheiro?
– Dá. Vai rapidinho.
E fez o xixi mais rápido que conseguiu.
Quando voltou para entrar no ônibus:
-Cadê o ônibus que tava aqui? Tinha um ônibus aqui! Onde ele está?!!!!!!!!!!
Numa questão de segundos tudo passou de uma só vez pelos seus olhos internos; o livro que havia ficado no banco, marcando o último parágrafo lido; os óculos, que sem ele nada poderia ser lido de perto. Mas seu desespero veio à tona quando lembrou de sua mala deixada lá embaixo, no maleiro que tudo cabe. Ela tinha, como outros passageiros, transportando parte de sua vida naquele buraco. Seu computador! Como poderia trabalhar em Paragominas sem seu computador? Sem tudo que usaria e que estava na mala? E então o chão se abriu e quase que ela cai lá dentro. Mas foi mais rápida que a erosão e correu berrando pela pequena rodoviária:
– Onde está o ônibus que vai para Paragominas?!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Conseguiram interceptar o motorista, que parou a umas quatro quadras dali.
Ela, lançando mão de todos os momentos de exercícios físicos feitos na vida, correu como nunca. Alcançou o ônibus que a esperava de portas abertas. E quase voando no pescoço do motorista:
-Não acredito que você me deixou lá? Você disse que eu podia ir no banheiro.
Ele com cara de bobo:
-Desculpe.
Ela explodindo de raiva:
-Ainda bem que foi o número um, porque se fosse o dois eu tava fu…
E entrou bufando pelo corredor até recuperar seu livro, seus óculos, sentar no banco e sem beber mais nenhum gole d’água. Xixi? Só quando chegasse ao hotel e com a bagagem bem a vista.
E foi então, que ela abandonou aquela memória e voltando para o presente se viu novamente ouvindo aquela sinfonia de falatório desarticulado e de repente, apenas um som entrou pelos seus ouvidos até ser decodificado pelo cérebro:
– Tonico larga isso! Ordenava a voz firme da senhorinha magra e enrugada feito uva passa, em pé no corredor, que empurrava a perna dela, por ser empurrada por outro corpo.
E usando o sentido da visão, ela ligou os olhos da senhorinha aos de Tonico e viu, viu que estava bem na mira do revolver dele, que esbravejou novamente para o motorista:
-Eu vou entrar! Já disse! Eu tenho que entrar!
-Não cabe mais ninguém. Já vai encostar outro ônibus, esse tem que ir – Dizia o motorista, tentando fazer seu trabalho e aparentemente acostumado com esses rompantes, já que falava com agressor sem alterar a voz.
Tinha polícia na rodoviária, mas nem se mexeu para socorrer os passageiros em risco. Quem rendeu Tonico? A senhorinha com jeito de uva passa que tinha menos da metade do tamanho dele.
-Chega Tonico! Ordenou ela. Abaixa essa arma, agora!
Ele, obedecendo-a, desceu do ônibus, guardou a arma e foi esperar o próximo, que logo encostaria.
Os guardas? Nada fizeram.
Então, o ônibus pôde seguir viagem.
Ela, tentando entender o que havia acabado de acontecer, falou pra senhorinha:
-Sabia que a senhora salvou este ônibus?
-Ele é meu sobrinho e acabou de sair da prisão. Cumpriu pena porque matou um homem. Ele é muito cabeça quente. Disse a tia.
Ela então, agradeceu novamente a senhorinha e guardou aquela história como mais uma a ser contada sobre as inusitadas viagens de Belém a Paragominas e vice-versa.
Texto e ilustração: Valéria Pimentel
KKKK….Essa é a mais pura verdade! Eu mesmo pude constatar muitos desses momentos marcantes, inusitados e ímpares, que só acontecem nesta viagem de Paragominas à Belém. Pura emoção! kkk…Ótimo Valéria!
Lelé, loucura pensar que não é ficção! Aventuras, memórias, gostei!