E telefonando pra prima…
– Alô?
– Oi, sou eu. Que tal uma tarde Barbie? – referindo-se aos encontros que, esporadicamente, tinham para cuidar da beleza, fazendo as unhas e as sobrancelhas, em casa mesmo.
-Boa ideia, que horas?
-Vem pra cá às 16h. Vou fazer chá com bolacha pra gente. Achei uma oferta no mercado e comprei de vários sabores. Acredita que aquele chá inglês tava custando quatro reais? Vou arrumar a mesa bem chique. Mas primeiro a gente faz as unhas, depois toma o chá.
– Legal, gostei da ideia. Tá combinado.
Elas aproveitavam esses encontros para colocar a fofoca em dia, falar do trabalho, dos maridos, lembravam da infância e adolescência vividas juntas, de passagens engraçadas da vida e dos planos para o futuro. Sempre se divertiam muito. Juntas, tinham grande facilidade para rir da vida.
Na primeira vez que se encontraram, uma era recém-nascida e a outra estava aprendendo a andar. A mãe da mais velha tinha ido visitar a prima que ganhara uma bebezinha. E num momento de distração dos adultos, eis que a andarilha com ciúmes do centro das atenções avançou sobre o rosto da bebê e foi por pouco que a visita não virou tragédia.
Com certeza, se não fosse por conta daquela mania que as pessoas têm de falar de casos do passado, a prima mais nova jamais soubesse do atentado sofrido em seus primeiros dias de vida. E logo da parte de sua querida e amiga prima. De alguma maneira aquele fato nunca saiu de seu inconsciente. Para todos aqueles a quem ela apresentava sua prima, não deixava de mencionar o jeito tragicômico em que haviam se conhecido.
Lá pelos sete anos já eram as melhores amigas. Mas sabe coisa de criança terrível, ou trauma de infância, por conta da perda do tono? Então, por isso, a mais velha não perdia uma chance de detonar a mais nova.
Ambas cresceram, amadureceram e as traquinagens cruéis de infância foram cedendo lugar às cumplicidades da vida. É, mas o sentimento inconsciente de vingança da menor não cedeu lugar a outro.
O chá da tarde era para ser um daqueles divertidos encontros. Mas o acaso acrescentou à vida uma oportunidade imperdível.
– Posso usar aquela sua máquina que massageia os pés? Perguntou a tirana dos tempos de infância.
– Claro, pera aí que eu vou esquentar a água no micro-ondas.
Ao saborear cada gole do chá inglês a prima mais nova ia se lembrando de como a oportunidade de vingança foi se desenhando em sua mente, durante o momento Barbie.
E ao colocar com tudo os pés na máquina massegeadora, a outra exclamou:
– Que delícia! Tá quentinho! Adorei! – sentindo o alívio do cansaço na base sustentadora do corpo.
– Você não colocou os pés sujos aí dentro, né? Caramba, não acredito que não limpou os pés antes. Olha aí tá sujando tudo – constatou a dona do equipamento eletrônico.
E foi o líquido preto que viu manchando a água límpida, que a levou sem escala às lembranças de como sua prima folgava com ela na infância. Mas imediatamente ao retornar para o presente, se olhou como se estivesse flutuando sobre si mesma e viu que, naquele mesmo instante, estava fazendo as unhas das mãos de sua prima, que relaxava com os pés sujos na sua máquina – presente que ganhou do marino, no dia dos namorados.
Não, ela não fora folgada só na infância, estava sendo também no presente. Então, a mais nova se deu conta de sua responsabilidade sobre a atitude da outra. Ela sempre deixara que isso acontecesse. Era hora de mudar. E ao terminar de fazer as unhas da prima, que continuava se refastelando com os pés na água quente, levantou e foi aquecer a cera líquida para depilar o próprio buço.
Deu mais um gole no chá inglês, que desceu quentinho pela garganta, forrando seu espírito aliviado por ter finalmente se vingado e lembrou-se do que havia acontecido momentos atrás, enquanto colocava a cera quente no buço.
Sua imagem foi aos poucos entrando pelo lado esquerdo do espelho. Não se deparou mais com seu rosto costumeiro e sim com o bigode mais conhecido da história das crueldades humanas, o de Hitler. Foi quando tudo ao seu redor pretejou, sobrando apenas um foco de luz em cima da prima, que ainda continuava com os pés submersos.
E, então, a iluminação apresentou um pedaço de fio desencapado, apoiado no chão e bem próximo da possa d’água – É, a folgada também jogava água no chão!
Assim, ela previu que faltava só um empurrãozinho para o fio encostar ali e pronto, nunca mais aquele sofrimento a acompanharia. E voltando o olhar para o espelho, a imagem do bigode foi mais forte que tudo. O sentimento de vingança percorreu seu corpo e ao chegar na pontinha de seu pé, este escorregou até dar um supetão no fio. A parte desencapada juntou-se a água criando uma corrente elétrica que caminhou dali até o último fio de cabelo da prima folgada.
Não houve arrependimento. Só a certeza de ter feito a coisa certa.
E tomando seu último gole de chá inglês, olhou pra prima sem conseguir conter as gargalhadas. A outra sem nem entender o motivo e já rindo, perguntou:
– O quê que eu perdi?
– Quer saber mesmo?
– Ah, vai conta logo!
– É que eu acabei de te torrar – e explicou o que sua fértil imaginação havia feito em questão de minutos.
E pensa que a morta se ofendeu? Que nada, foi mais um motivo pras duas caírem ainda mais na gargalhada.
Texto e ilustração: Valéria Pimentel